Histórias do Recôncavo: O médico e o cangaceiro?
Por Archimedes Marques.
A minha avó Helena Motta Marques, quando ainda com vida e lúcida, contava uma história ocorrida em Nazaré das Farinhas, cidade do Recôncavo da Bahia, na madrugada do dia 27 de maio de 1929, época em que ela e o meu avô Archimedes Ferrão Marques, então médico, naquele município residiram por alguns anos.
O meu avô que era médico daqueles que de tudo fazia para ajudar as pessoas, além de ter um cargo estadual como sanitarista possuía também uma farmácia tipo drogaria onde atendia aos doentes e ali mesmo quase sempre manipulava e vendia os remédios que ele próprio receitava. A farmácia que servia de aprendizado e de complemento de renda familiar lhe dava outros bens de consumo, além da satisfação de curar doentes e salvar vidas, vez que, quando os seus pacientes não podiam pagar com dinheiro, presenteavam-no com galinhas, patos, cabritos, porcos e outros animais. Assim eles viveram uma vida dura e simples em Nazaré das Farinhas naquele tempo de muito trabalho, mas também de boas realizações e excelentes lições de vida.
O meu avô Archimedes era muito caridoso e atendia qualquer um a qualquer hora, independente da pessoa ter ou não como pagar pela consulta ou pelo medicamento utilizado. Bastava bater na porta da sua casa que ficava anexa a sua farmácia, que ele medicava, fazia curativos, pequenas intervenções cirúrgicas, engessamento em traumatismo de pernas e braços e até partos realizava com o maior prazer possível. Era médico por vocação, amava a sua profissão e tentava seguir fielmente o Juramento de Hipócrates.
Naquele dia, mais de perto na calada da madrugada, em meados das primeiras horas, chegaram a sua casa dois homens montados a cavalo, um deles com um dente bastante inflamado e “urrando” de dor, querendo a qualquer custo que ele o arrancasse e lhe livrasse daquele atroz sofrimento. Não bastaram as desculpas do meu avô em dizer que somente poderia aliviar a sua dor, pois não era dentista e sim um médico e, além disso, nunca tinha arrancado um dente na sua vida, além de não possuir os instrumentos pertinentes necessários para uma perigosa extração como aquela demonstrava ser.
O homem desesperado puxou de um punhal dizendo que se ele não arrancasse o seu dente seria sangrado ali mesmo sem dó ou piedade. Diante do novo “argumento” não restou outra alternativa senão cumprir a vontade do bandido. Aflita e trêmula de medo a minha avó logo foi buscar um alicate comum na caixa de ferramentas e o colocou para esterilizar em água fervente, enquanto o meu avô aplicava injeção de morfina na boca inchada do intransigente paciente e depois de muito suor, desespero, gemidos e luta do alicate com a boca, o dente do cidadão finalmente foi extraído. Em seguida o meu avô fez uma boa limpeza em toda a boca infeccionada do paciente, aplicando-lhe uma injeção antibiótica e, recomendando por fim, além da higiene necessária, repouso absoluto nos dois dias seguintes.
O homem agradecido e aliviado, em demonstração de possuir algum sentimento, tirou um anel de ouro de um dos seus dedos e o deu como paga ou presente para o meu avô que então mais à vontade, criou coragem para perguntar pelos nomes deles, obtendo a resposta do outro cidadão acompanhante, que os seus nomes não lhe interessava e se ele tivesse juízo que ficasse calado sobre o ocorrido para não ter um dia a sua garganta cortada. Em seguida montaram nos seus cavalos e desapareceram no escuro da noite para sempre.
Por via das dúvidas, diante do iminente perigo da ameaça e com receio dos homens voltarem em vingança caso fossem denunciados e presos, os meus avós preferiram guardar segredo dos fatos durante o tempo em que naquela cidade permaneceram, não prestando queixa à Polícia nem tampouco comentando com vizinhos e amigos sobre o desespero e terror pelos quais passaram naquela noite.
Diz o velho ditado que não há um mal que não traga um bem. Assim, a lição e o exemplo vividos pelo casal que inclusive já tinha filhos menores, serviram para que o meu avô adquirisse os instrumentos dentários essenciais e passasse também a extrair dentes, sendo então, mais uma fonte de satisfação e caridade aos mais necessitados que passavam pela angustia dessa insuportável dor, além do somatório próprio da renda familiar, vez que no município não existia um dentista sequer. Contava a minha avó que por vezes a fila para extrair dentes era bem maior do que as consultas médicas tradicionais realizadas pelo meu avô Archimedes.
Quanto aos dois desconhecidos que a minha avó dizia ser de compleição física sertaneja e rude, de cor morena queimada pelo sol e que usavam roupas grosseiras com bornais de couro e outros apetrechos, nunca souberam de quem se tratavam.
Teriam sido cangaceiros desgarrados de algum grupo de Lampião ou teriam sido criminosos outros procurados pela Polícia?... Como não há nenhum registro de ataque ou presença de cangaceiros no município de Nazaré das Farinhas é mais provável a segunda opção.
A titulo de ilustração transcrevo o breve currículo do meu avô, colhido no site http://linux.alfamaweb.com.br/asm/dicionariomedico/dicionario.php?id=31900:
Archimedes Ferrão Marques.
Nasceu em 2 de julho de 1892, em Salvador/BA, filho de Ernesto dos Santos Marques e Ana Ferrão Moniz Marques. Formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1917, defendendo a tese “Raspagem Uterina”. Iniciou suas atividades médicas em 1918, combatendo a epidemia de varíola que grassava em todo o interior da Bahia, sendo em razão disso nomeado Inspetor Sanitário do 10º Distrito da Bahia e membro da Comissão Sanitária Federal de Combate à Febre Amarela. Em seguida, ainda em Salvador, foi transferido para o serviço de Saneamento Rural, onde fez carreira como médico, subinspetor, inspetor e chefe de distrito e zona até dezembro de 1930. Nomeado Sanitarista do Ministério da Saúde, atuou na Delegacia Federal de Saúde da 5ª Região da Bahia. Transferiu-se para Recife, onde atuou na Delegacia Federal de Saúde e Inspetoria de Saúde dos Portos, durante a 2ª Guerra Mundial. Em 1945 é designado para a Delegacia de Saúde da 6ª Região, em Aracaju. Cumulativamente exerceu o cargo de médico da Caixa de Aposentadorias e Pensões da Leste Brasileira. Atuou como clínico e obstetra. Faleceu em 17 de março de 1968, em Salvador/BA, com 76 anos.
(*Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Publica pela Universidade Federal de Sergipe) archimedes-marques@bol.com.br
A minha avó Helena Motta Marques, quando ainda com vida e lúcida, contava uma história ocorrida em Nazaré das Farinhas, cidade do Recôncavo da Bahia, na madrugada do dia 27 de maio de 1929, época em que ela e o meu avô Archimedes Ferrão Marques, então médico, naquele município residiram por alguns anos.
O meu avô que era médico daqueles que de tudo fazia para ajudar as pessoas, além de ter um cargo estadual como sanitarista possuía também uma farmácia tipo drogaria onde atendia aos doentes e ali mesmo quase sempre manipulava e vendia os remédios que ele próprio receitava. A farmácia que servia de aprendizado e de complemento de renda familiar lhe dava outros bens de consumo, além da satisfação de curar doentes e salvar vidas, vez que, quando os seus pacientes não podiam pagar com dinheiro, presenteavam-no com galinhas, patos, cabritos, porcos e outros animais. Assim eles viveram uma vida dura e simples em Nazaré das Farinhas naquele tempo de muito trabalho, mas também de boas realizações e excelentes lições de vida.
O meu avô Archimedes era muito caridoso e atendia qualquer um a qualquer hora, independente da pessoa ter ou não como pagar pela consulta ou pelo medicamento utilizado. Bastava bater na porta da sua casa que ficava anexa a sua farmácia, que ele medicava, fazia curativos, pequenas intervenções cirúrgicas, engessamento em traumatismo de pernas e braços e até partos realizava com o maior prazer possível. Era médico por vocação, amava a sua profissão e tentava seguir fielmente o Juramento de Hipócrates.
Naquele dia, mais de perto na calada da madrugada, em meados das primeiras horas, chegaram a sua casa dois homens montados a cavalo, um deles com um dente bastante inflamado e “urrando” de dor, querendo a qualquer custo que ele o arrancasse e lhe livrasse daquele atroz sofrimento. Não bastaram as desculpas do meu avô em dizer que somente poderia aliviar a sua dor, pois não era dentista e sim um médico e, além disso, nunca tinha arrancado um dente na sua vida, além de não possuir os instrumentos pertinentes necessários para uma perigosa extração como aquela demonstrava ser.
O homem desesperado puxou de um punhal dizendo que se ele não arrancasse o seu dente seria sangrado ali mesmo sem dó ou piedade. Diante do novo “argumento” não restou outra alternativa senão cumprir a vontade do bandido. Aflita e trêmula de medo a minha avó logo foi buscar um alicate comum na caixa de ferramentas e o colocou para esterilizar em água fervente, enquanto o meu avô aplicava injeção de morfina na boca inchada do intransigente paciente e depois de muito suor, desespero, gemidos e luta do alicate com a boca, o dente do cidadão finalmente foi extraído. Em seguida o meu avô fez uma boa limpeza em toda a boca infeccionada do paciente, aplicando-lhe uma injeção antibiótica e, recomendando por fim, além da higiene necessária, repouso absoluto nos dois dias seguintes.
O homem agradecido e aliviado, em demonstração de possuir algum sentimento, tirou um anel de ouro de um dos seus dedos e o deu como paga ou presente para o meu avô que então mais à vontade, criou coragem para perguntar pelos nomes deles, obtendo a resposta do outro cidadão acompanhante, que os seus nomes não lhe interessava e se ele tivesse juízo que ficasse calado sobre o ocorrido para não ter um dia a sua garganta cortada. Em seguida montaram nos seus cavalos e desapareceram no escuro da noite para sempre.
Por via das dúvidas, diante do iminente perigo da ameaça e com receio dos homens voltarem em vingança caso fossem denunciados e presos, os meus avós preferiram guardar segredo dos fatos durante o tempo em que naquela cidade permaneceram, não prestando queixa à Polícia nem tampouco comentando com vizinhos e amigos sobre o desespero e terror pelos quais passaram naquela noite.
Diz o velho ditado que não há um mal que não traga um bem. Assim, a lição e o exemplo vividos pelo casal que inclusive já tinha filhos menores, serviram para que o meu avô adquirisse os instrumentos dentários essenciais e passasse também a extrair dentes, sendo então, mais uma fonte de satisfação e caridade aos mais necessitados que passavam pela angustia dessa insuportável dor, além do somatório próprio da renda familiar, vez que no município não existia um dentista sequer. Contava a minha avó que por vezes a fila para extrair dentes era bem maior do que as consultas médicas tradicionais realizadas pelo meu avô Archimedes.
Quanto aos dois desconhecidos que a minha avó dizia ser de compleição física sertaneja e rude, de cor morena queimada pelo sol e que usavam roupas grosseiras com bornais de couro e outros apetrechos, nunca souberam de quem se tratavam.
Teriam sido cangaceiros desgarrados de algum grupo de Lampião ou teriam sido criminosos outros procurados pela Polícia?... Como não há nenhum registro de ataque ou presença de cangaceiros no município de Nazaré das Farinhas é mais provável a segunda opção.
A titulo de ilustração transcrevo o breve currículo do meu avô, colhido no site http://linux.alfamaweb.com.br/asm/dicionariomedico/dicionario.php?id=31900:
Archimedes Ferrão Marques.
Nasceu em 2 de julho de 1892, em Salvador/BA, filho de Ernesto dos Santos Marques e Ana Ferrão Moniz Marques. Formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1917, defendendo a tese “Raspagem Uterina”. Iniciou suas atividades médicas em 1918, combatendo a epidemia de varíola que grassava em todo o interior da Bahia, sendo em razão disso nomeado Inspetor Sanitário do 10º Distrito da Bahia e membro da Comissão Sanitária Federal de Combate à Febre Amarela. Em seguida, ainda em Salvador, foi transferido para o serviço de Saneamento Rural, onde fez carreira como médico, subinspetor, inspetor e chefe de distrito e zona até dezembro de 1930. Nomeado Sanitarista do Ministério da Saúde, atuou na Delegacia Federal de Saúde da 5ª Região da Bahia. Transferiu-se para Recife, onde atuou na Delegacia Federal de Saúde e Inspetoria de Saúde dos Portos, durante a 2ª Guerra Mundial. Em 1945 é designado para a Delegacia de Saúde da 6ª Região, em Aracaju. Cumulativamente exerceu o cargo de médico da Caixa de Aposentadorias e Pensões da Leste Brasileira. Atuou como clínico e obstetra. Faleceu em 17 de março de 1968, em Salvador/BA, com 76 anos.
(*Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Publica pela Universidade Federal de Sergipe) archimedes-marques@bol.com.br
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