Midia Recôncavo - Oficial - Por Anderson Bella

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

ARTIGO ABORDA A DROGA CRACK COMO UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA


Em fevereiro deste ano, a Junta Internacional de Fiscalização a Entorpecentes (Jife) — órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) — divulgou seu relatório anual sobre o perfil de consumo e tráfico de drogas em 2009. O abuso de drogas ilícitas na América do Sul vem aumentando, enquanto na Europa e na América do Norte a tendência é de queda (em 2008, foram aprendidas 19,5 toneladas de cocaína e, em 2009, 21,5 toneladas, um aumento de 15% em relação ao ano anterior, superando inclusive o México, com 19,3 toneladas) neste tipo de flagrante.
Ainda segundo a Jife, o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de maior consumidor mundial dessa droga e tem a principal rota de tráfico internacional no Cone Sul. O relatório também apontou preocupação quanto à mudança do perfil do consumo no país. Há cada vez menos uso de drogas injetáveis e mais da cocaína fumada, conhecida como crack (nome devido ao som que é produzido quando a substância é consumida nos cachimbos). Essa tendência já era percebida na década de 1990, de acordo com artigo publicado na Revista da Associação Médica Brasileira (volume 43, nº 1, jan/mar de 1997) que revelava que a porcentagem de pacientes que relataram uso do crack havia aumentado de 17%, em 1990, para 64%, em 1993, em dois ambulatórios na cidade de São Paulo.
De acordo com o coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado, o crack é menos utilizado que a maconha e a cocaína aspirada, mas o problema, diz, não reside na magnitude do número total de casos, e sim na gravidade dos quadros de consumo da droga. O uso no mês — resposta à pergunta “nos últimos 30 dias você usou a substância tal?” — é de 0,4% para a cocaína e 0,1% para o crack, na população de 12 a 65 anos, em 2005, revelam dados do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, da Unifesp. Pedro Grabriel explica que o consumo do crack — resultado de uma mistura de cristal de cocaína ou pasta base ou cocaína em pó (cloridrato de cocaína e adulterantes), água e bicarbonato de sódio — tem pelo menos dois fatores de risco: a dependência e a vulnerabilidade dela decorrente, que fazem dessa droga grave problema de saúde pública e enorme desafio para o governo brasileiro.
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A dependência caracteriza-se não só pela incapacidade de se interromper o uso no momento desejado e a necessidade de se usarem doses cada vez maiores para obter os mesmos resultados, como pelos efeitos físicos e psíquicos causados pela abstinência. “Sabe-se que o crack causa dependência muito rápida e intensa e, por ser droga ilícita, distribuída em um cenário de marginalidade e violência, geralmente se associa a um contexto de extrema vulnerabilidade social”, analisa Pedro Gabriel.
A gravidade e a intensidade dos problemas gerados pelo consumo da droga não devem ser vistos, no entanto, como sinônimos de uma situação irreversível para os usuários. A dependência do crack não é algo incurável, afirma Pedro Gabriel. Ao contrário, há resultados extremamente positivos entre os que se submetem a tratamento. “O importante é que a intervenção não tenha olhos apenas para o uso da droga, mas para a vida dos sujeitos afetados, sua marginalização e vulnerabilidade”, orienta.
O uso do crack, em geral, está associado ao consumo de álcool e à exposição ao ambiente insalubre e inóspito das ruas e dos locais clandestinos de consumo. Em geral, a droga é consumida por jovens que vivem na rua, onde há ausência de suporte social eficaz. Eles praticam delitos para adquirir o que desejam, têm relação estreita com a violência sexual e policial e convivem com a debilidade física causada pela alimentação escassa e irregular. “Predominam usuários jovens, do sexo masculino. O uso pelo grupo que vive em situação de rua é até 12 vezes maior que pelo restante da população. Em alguns contextos mais graves, crianças muito jovens, de até 8 anos, podem ser induzidas ao consumo que, por sua vez, avança para a classe média, como mostram alguns dados, mas ainda de forma incipiente”, informa Pedro Gabriel. É um problema do mundo todo, que veio despontando a partir nos anos 90. Mas é especialmente mais grave na América Latina, onde a vulnerabilidade social a que estão submetidos, os usuários, especialmente, crianças e jovens consumidores urbanos, é extrema.
Para o médico e psicanalista Tarcísio Andrade, coordenador do Serviço de Extensão Permanente Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o uso do crack é como o de outras drogas. O problema é que se trata de uma forma de consumo mais intenso, passível de maior dependência, e que atinge principalmente pessoas com desvios sociais, populações menos favorecidas socialmente, com menor nível institucional e menor capacidade técnica de inserção social. “Só que o que se tenta mostrar é que o crack é o gerador de todos os problemas sociais, não o contrário”, critica. “O usuário não é uma pessoa à parte”.
Tarcísio defende o tratamento da dependência tanto do crack quanto de outras drogas, sob a ótica da redução de danos. “Significa adequar os serviços à realidade da comunidade”, esclarece. “É focar no sujeito, e não na substância”, acrescenta Marco Manso, que atua como redutor de danos da Aliança. O serviço volta-se às comunidades pobres de Salvador, indo ao encontro das pessoas usuárias de crack, e presta capacitação aos profissionais de saúde da atenção básica. Além disso, dispõe de ambulatório clínico para os casos mais complexos.
Segundo Tarcísio, os usuários de crack vão pouco aos serviços de saúde, pois não os têm como referência. “Por isso, o tratamento precisa ser realizado onde está o usuário”. Não é simples, conforme já constatou. Para ele, a Estratégia de Saúde da Família é o que se tem de melhor para alcançar o usuário da droga. “Mas é preciso capacitar o profissional de saúde e acabar com a crença de que o tratamento somente pode ser feito em clínica especializada. No Brasil, os modelos tradicionais de tratamento, com longas internações, conduzidos por instituições religiosas ou comunidades terapêuticas, são os mais usados pela sociedade. “Em geral, são práticas verticalizadas e distanciadas e, por isso, muitos tratamentos não dão certo”, explica Tarcísio.
Ele não descarta os modelos tradicionais, mas acha que não resolvem o problema totalmente. “Não há como colocar todos os usuários do crack numa instituição”, afirma. Para Tarcísio, esses locais de tratamento deveriam servir de retaguarda. “Precisamos de vários modelos e saber onde cada usuário se adapta melhor”, aponta. “O desafio é tão amplo e espinhoso, que precisamos unir os esforços de todos”, diz Pedro Gabriel.
Terapia ampliada
Para Manso, também é possível trabalhar com os dois modelos, mas “quando se fala em internação, é preciso o desejo da pessoa”, salienta. É ingênuo supor que a internação por longos períodos é uma solução eficaz em si mesma, observa Pedro Gabriel. “Se necessária, ela precisa fazer parte de um projeto terapêutico mais amplo, que leve em conta a singularidade de cada história de vida, os recursos existentes na rede de saúde e de proteção social, a participação ativa da família e da rede de relações do usuário”, avalia.
Para Pedro Gabriel, algumas instituições praticam um tipo de intervenção que aumenta o estigma e dificulta a inclusão social do usuário, e, em alguns casos, chegam a provocar situações de desrespeito aos direitos humanos e que devem ser energicamente coibidas. “Mas o trabalho desses grupos filantrópicos é, de uma maneira geral, muito bem intencionado e valioso. Eles podem e devem ter um papel relevante de apoio e articulação com a rede de serviços do SUS e de outras políticas sociais, com a assistência social, a Justiça, a educação e o trabalho”, observa.
Em sua avaliação, é necessária uma radical abertura a inovações, flexibilidade nos conceitos terapêuticos e tolerância com a diversidade. Uma delas, informa, são os consultórios de rua. “A ideia é levar o cuidado até o ambiente inóspito onde vivem os usuários, lugares cruelmente designados como cracolândias”, explica. Pedro também elogia a abordagem da redução de danos, por sua abrangência, visão pragmática do problema e potencial de ampliar a adesão ao tratamento.
Relação de confiança
De acordo com Pedro Gabriel, o conceito de cuidado utilizado pelo Ministério da Saúde relaciona-se ao de rede pública ampliada, com intervenção simultânea nos fatores clínicos — dependência e condições psíquicas dos usuários — e sociais, como vulnerabilidade e fragilidade dos laços de pertencimento à família, escola, trabalho, lazer e comunidade. “É preciso garantir a continuidade do cuidado, de tal maneira que o usuário estabeleça uma relação de confiança com o sistema público de atenção”, explica.
A rede de cuidado do usuário de crack é composta pela atenção básica — equipes de Saúde da Família e agentes comunitários de saúde, Centros de Atenção Psicossocial (Caps), especialmente os Caps-AD (Álcool e Drogas) e os Capsi (Infanto-Juvenil) —, leitos de acolhimento e desintoxicação em hospitais gerais, unidades de acolhimento temporário, como as casas de passagem, e internações mais longas, quando necessário. “O Ministério da Saúde tem estimulado a criação, segundo as diversidades locais, de redes que incluam o Caps-AD, uma pequena unidade de internação curta em ambiente de hospital geral, uma hospedaria ou casa de passagem e um centro de convivência”, salienta. Além disso, uma intensa articulação com a atenção básica e com as redes de proteção social e de cidadania (assistência social, juizado de infância e juventude, defensoria pública, serviços culturais, rede escolar etc.). “A oferta de cuidado tem que ser diversificada, porque não se trata apenas de separar o usuário do consumo ou tratar a intoxicação pela droga, mas protegê-lo da situação de vulnerabilidade e ajudá-lo a reconstruir alternativas que lhe façam pensar e sentir que a vida vale a pena ser vivida”, salienta. É o que também defende Manso, para quem o cuidado integral do usuário de crack somente é possível por meio de uma rede que inclua serviços de tratamento como os Caps e ambulatórios como o da Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti.
Para Tarcísio, o tema exige ação intersetorial. “O Caps-AD de Salvador, por exemplo, tem entre suas atividades a jardinagem. Mas quando o usuário sai de lá, não tem onde aplicar o que aprendeu”, diz. “Nesse caso, a instituição pode fazer parceria com a Secretaria de Meio Ambiente ou de Administração, para que possa integrar as pessoas na atividade fim”, propõe. É o que normalmente acontece nas comunidades terapêuticas, distanciadas da realidade. “O usuário, enquanto internado, passa o tempo todo envolvido em tarefas, cuida dos porcos ou de outros bichos, e, quando sai de lá, onde vai trabalhar?”, questiona. Se não for inserido na sociedade, as chances de voltar a usar a droga são grandes. “Ninguém quer morrer aos 20 anos de idade. Mas isso acontece muitas vezes com o usuário de crack por falta de oportunidade”, atenta.
O mesmo pensa Pedro Gabriel, para quem a política de assistência social é tão importante quanto a de Saúde Pública nessas situações de intensa vulnerabilidade, por exemplo. “Mas ainda é muito insuficiente a articulação do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) na ponta do sistema, seja no território ou no bairro”, revela. “Os Centros de Referência de Assistência Social (CRAs) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREs), unidades de atenção do SUAS, precisam estar mais próximos dos Caps e da atenção básica”, sugere.
O Ministério da Saúde, porém, já avança numa ação coordenada com o sistema de proteção legal, por meio dos conselhos tutelares, Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública. “Desde 2005, funciona o Fórum Nacional de Políticas para Crianças e Adolescentes com Problemas de Saúde Mental e Consumo Prejudicial de Drogas, que tem facilitado a cooperação em rede das diversas políticas e instituições do estado e da sociedade”, ressalta. A 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental, cuja etapa dos municípios está em andamento, assumiu deliberadamente um caráter intersetorial para tratar do consumo do crack. “O tema não será discutido apenas por psiquiatras, psicólogos e demais atores da área da saúde, mas por juízes, promotores, agentes da assistência social, da cultura, trabalho, habitação e outras políticas sociais”, diz. O caminho, conclui, diante da complexidade do problema do crack, é acelerar o debate e os pactos intersetoriais.
A chamada da campanha do MS — Nunca experimente o crack . Ele causa dependência e mata —, veiculada em rádios, TVs e jornais e no próprio site do ministério, cumpriu seu papel de trazer o tema ao debate da sociedade, na avaliação de Pedro Gabriel. “Um levantamento sobre a receptividade da campanha mostrou que ela atingiu um segmento expressivo da população”, informa. Entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010, com a campanha no ar, foram feitos 350 mil acessos ao Disque-Saúde que tratavam do crack. “O importante é a continuidade da ação”, afirma. Os passos seguintes, pontua, são ações de educação em saúde, prevenção, combate ao estigma, orientação aos professores nas escolas, entre outras medidas de prevenção e promoção da saúde.
Para Manso, a iniciativa da campanha “abre o debate à sociedade”, mas dizer simplesmente que crack mata não é suficiente. Atribuir ao crack a culpa pelos homicídios cometidos, de modo a mostrar como a droga é perigosa, preocupa Manso. ”Em Salvador, por exemplo, o que se tem divulgado é que 80% dos homicídios estão ligados à droga”, informa, considerando perversa a abordagem, uma vez que esses índices são maiores em locais onde o Estado está ausente. “Parece que a substância é algo inerte e o problema são as pessoas que fazem uso dela”. Para ele, é urgente pensar políticas públicas de longo prazo, que atinjam as comunidades mais pobres.
Artigo publicado na revista Radis número 92

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